junho 22, 2015

Gean Zanelato: Cicatriz



Uma vez me disseram que temos a capacidade de fechar os olhos e imaginar o melhor. Nós temos o poder de imaginar o melhor desfecho, a melhor vida, o melhor futuro. Se acreditarmos, num instante podemos estar comendo a mais deliciosa rosquinha do mundo, e no outro realizando o mais louco dos nossos sonhos, apenas imaginando. Chegou aquele momento em que meus olhos fecharam, mas tudo ficou escuro, e eu soube que algo estava errado.


Primeiro o vento trouxe a noticia do tumor. Foi uma rajada de vento frio, forte, devastadora. Todos ao meu redor imaginaram o pior. O que posso dizer, no entanto, é que fui confiante, fiz a cirurgia e saí do hospital ileso. Tentei me confortar pensando no que havia além da tempestade.

Durante a minha recuperação, estava eu distraído na cama preparando a troca de curativos, quando um pensamento intruso invadiu a intimidade da minha mente. Ele era um pensamento mesquinho, ridículo, pequeno. Eu conheço essa raça. Eles sempre aparecem tentando mudar o nosso foco, nos rebaixar, e é certo que devemos nos esquivar o mais rápido possível. O que houve, no entanto, foi que desta vez eu o ouvi, deduzi que nada aconteceria:

– Essa cicatriz vai ficar aí para sempre – ele sussurrou.

Deslizei meus dedos cuidadosamente sobre os pontos, e senti a pele áspera como couro. Os grossos pontos amarrando o ferimento estavam firmes o bastante para me dar a certeza de que aquele pensamento tinha razão. Horrorizado, retirei os dedos dos pontos, e caí no choro porque minha pele não seria mais tão bela como a pele dos outros. Amaldiçoei o vento pelos maus agouros, e Deus por ser tão injusto com seus filhos.

Eu não pensei: “Sou grato pela cirurgia ter dado certo.” Não pensei: “Estou feliz que esse tumor tenha levado consigo a beleza da minha pele, ao invés da minha vida.” Eu pensei: “Essa cicatriz vai ficar aí para sempre.” Então meus pensamentos ficaram cada vez mais escuros, cheguei a não sentir mais nada. Submerso na ausência fria de qualquer sentimento. Eu não sabia por quê, mas quando me recuperei fisicamente, todas as cores sumiram, e  tive vontade de parar de respirar.


Neste mundo, há muitas coisas que estão além do nosso controle. Mas você tem controle das suas reações diante aos acontecimentos em sua vida. O que eu sei agora é que todos nós nos tornamos exatamente no que acreditamos. Um tumor está além do nosso controle. Nós não podemos escolher se teremos, ou se sobreviveremos. Podemos escolher se vamos tratar, e como vamos lidar com as cicatrizes.

Durante um curto espaço de tempo, fui refém deste pensamento. Ele me dizia que eu jamais me sentiria feliz de novo. Ele me dizia que eu não era o bastante. Ele me dizia que eu não poderia mostrar a minha perna em público, porque eu seria ridicularizado por ser diferente. Porque a cicatriz, símbolo da minha vitória, era na realidade, a minha perdição.

Mas o vento, como bom mensageiro, trouxe também as boas notícias. As nuvens carregadas de trevas cederam um lugar ao sol, e me apeguei a essa brecha de luz com todas as minhas forças. Me permiti pensar que o tumor aconteceu por uma razão, que não foi um acidente. E que eu, assim como cada pessoa viva, não sou um acidente, então não há porque me sentir culpado.

Voltei a imaginar, e passei a acreditar que o fato de meus pais terem decidido ter um filho, de terem levado essa decisão adiante, não foi um acaso. Houve uma série de escolhas que precisaram ser feitas, em ordem, para que todos nós estivéssemos aqui hoje. Aquele óvulo em particular precisou ser fecundado por aquele espermatozoide em particular, naquele momento em particular, e então nós fomos criados.

Quando eu já estava andando, recuperado, e voltando a respirar, a viver, me dei conta disso, e percebi o óbvio, desde o princípio: o fato de eu estar aqui importa. O fato de você estar aí importa. Isso não é um acidente. Nenhum de nós é.  E não importam as cicatrizes, nosso peso, nossos defeitos físicos, mas a nossa capacidade de acreditar. Não importa quantos digam que você vai se eternizar num hospital, ou quantos pensamentos sussurrem que não é possível. Eu acredito, e estou aqui hoje.

Mas agora meus olhos estão abertos, e eu sei que o melhor está por vir.


Gean Zanelato

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